Quando se fala em processos colaborativos na atualidade por vezes existe uma tendência a enxergá-los como fenômenos extremamente originais e até mesmo revolucionários. Isto acontece, acredito, por uma ausência de uma reflexão mais calcada na história das práticas sociais.
Exatamente para fugir dessa visão, a meu ver equivocada, tenho buscado entender os processos autorais intersubjetivos que hoje têm lugar nas redes interativas como parte da história da autoria.
Nesse estudo, pude constatar que de fato a noção da autoria como algo de natureza individual e subjetiva surgiu num momento específico da História, momento esse marcado, não por acaso, por uma ênfase na autonomia, na racionalidade e na interioridade: a Modernidade.
A noção da autoria como um processo individual ganha ainda mais força no período do Romantismo, quando as qualidades subjetivas são ainda mais acentuadas. Uma qualidade muito própria, um talento único, destaca o gênio criador dos meros copiadores.
Mas antes disso, os processos criadores eram predominantemente colaborativos, feitos das intervenções de diversos agentes co-autores.
A questão homérica, por exemplo, tem ocupado pesquisadores há séculos, tentando decifrar afinal quem é o autor de Ilíada e Odisséia. Não existem provas definitivas a respeito, mas muitos pesquisadores acreditam que as obras são um registro de criações coletivas oriundas da cultura oral e que o nome Homero pode ser de uma pessoa que tenha liderado essa escrita ou somente um tipo de chancela cultural – como um carimbo na forma de uma assinatura – para validar aquele conteúdo.
Na Idade Média, o ofício coletivo da escrita é bem conhecido. Diferentes agentes eram os responsáveis pelo manuscrito de livros: o copista, o compilador, o comentador e o autor. As marginálias dos livros, com o registro de comentários, perfaziam uma segunda obra, com as interpretações do conteúdo original.
Essa breve passagem pela história da autoria serve para mostrar como os processos criativos colaborativos foram a regra na maior parte do tempo. E mesmo no período em que esse processo ganhou um perfil mais individualizado, ainda podemos questionar até que ponto a inspiração subjetiva não é fruto da própria cultura que é, por definição, coletiva. Como afirmou Barthes, em seu célebre artigo “A Morte do Autor”: “o texto é um tecido oriundo de mil focos da cultura”.
Então, quando vemos hoje a grande disseminação de projetos de autoria coletiva na rede, devemos entendê-los como um retorno dessas práticas sociais mais antigas que estiveram em certo desuso durante algum período.
A questão é que hoje temos também o individual como parte da configuração dessa autoria em rede. Como argumenta o professor Jean-Louis Weissberg, o que observamos é a existência de um “autor em coletivo”, uma produção coletiva, sem dúvida, mas na qual a nomeação, ou o crédito, de cada contribuição deve ser explicitamente registrada, a fim de que possa participar de uma economia do dom, na qual a reputação desempenha um papel fundamental.
Levantei aqui alguns pontos, de forma bem sucinta, de argumentos que desenvolvi de forma mais profunda no artigo “O que é a autoria em rede?”, que está disponível na página Escritos, neste blog.
Acredito que essas reflexões ajudem também a pensar uma série de fenômenos atuais, interligados, como a cultura do remix e a pirataria, para citar apenas alguns. Pretendo abordar esses desdobramentos em posts futuros.