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A escrita em meio digital

Uma das vertentes de minha pesquisa é o estudo sobre a especificidade da linguagem digital. Tenho buscado compreender o que diferencia o meio digital das outras plataformas que o precederam, especialmente em relação à escrita. Meu objetivo é entender o que realmente há de novo nesse meio para fugir de uma leitura muito deslumbrada do fenômeno. A história da escrita é muita antiga e variada, é interessante estudá-la para poder perceber o que de fato existe de inovador nos tempos atuais.

Um conceito que tem me ajudado muito nesse caminho é o de remediação, proposto pelos pesquisadores Jay Bolter e Richard Grusin. A ideia básica é que um novo meio não é criado a partir do nada, mas sim a partir de referências das linguagens das mídias que existiam antes. Então, dentro dessa lógica, cada novo espaço de escrita é uma remodelagem de seus antecessores. E o que realmente há de novo em cada um é a maneira única com que reinventa, ou dá nova forma, a uma mediação anterior.

É muito interessante, por exemplo, observar os manuscritos da era medieval. A interatividade, algo muitas vezes descrito como uma grande novidade da escrita digital, já estava presente nas marginálias, que nada mais eram do que comentários acrescentados ao texto original que iam se somando ao longo dos anos. Já comentei aqui em outro post que naquela época a produção textual tinha um caráter também colaborativo, pois era feita por diferentes agentes: o copista, o compilador, o comentador e o autor.

Depois veio o livro impresso e com ele toda uma outra prática social em torno da escrita e da leitura, marcada por um maior fechamento e individualização. O texto se tornou mais fechado em um duplo sentido: por um lado, passa a ter um autor individual identificado; por outro, não está aberto para acréscimos ou comentários. Paralelamente, a prática da leitura também se individualizou: as leituras públicas da era medieval foram pouco a pouco sendo substituídas pela leitura silenciosa e solitária na chamada Alta Idade Média. Desse modo, a separação entre autor e leitor se tornou mais nítida na medida em que o texto se fechou a interferências.

Observamos que a tecnologia eletrônica irá combinar as peculiaridades do manuscrito, como a interatividade e a produção coletiva, com as do texto impresso, como a leitura individual silenciosa. Soma ainda alguns traços da cultura oral (que desenvolvo depois em outro post), como o processo cognitivo comum.

Mas, então, o que a escrita em meio digital traz de novo? Para o pesquisador canadense De Kerckhove, a característica que distingue a interface digital é a conectividade, que está diretamente relacionada a outro atributo: a eletricidade. Por meio dela a mente humana é impulsionada para outra dimensão perceptiva e cognitiva, que diz respeito não só à velocidade, mas especialmente à abrangência das interações, favorecendo sobremaneira as estratégias colaborativas, notadamente em processos autorais.

Nesse ambiente, surge um novo tipo de espaço, que interliga de modo original o espaço público e o espaço privado, como um espaço estendido e coletivo que abre novos potenciais à criação. Podemos pensá-lo como um espaço híbrido, feito da interconexão entre o mundo material e o virtual. Assim, sozinho na frente da tela do computador, tem-se acesso a uma memória comum e a possibilidade de interagir com ela. O hipertexto promove, dessa forma, uma cognição compartilhada.

A eletricidade, portanto, é traço específico do meio digital que dá outra dimensão aos atributos que ele herda, ou remodela, dos outros meios. A interatividade e a produção coletiva ganham uma amplitude inédita e a capacidade de armazenamento de dados, ou a memória, passa a ser virtualmente infinita. Ao lado disso, a velocidade tecnológica possibilita conexões cada vez mais amplas e mais rápidas, multiplicando geometricamente o potencial cognitivo e criativo.

O post já ficou grande, e eu poderia escrever muito mais sobre a linguagem digital. Então vou parar por aqui, e volto ao tema em outro dia.

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