Arquivo do mês: outubro 2010

Autoria e autoridade – ou quem autoriza a produção discursiva?

Em minha pesquisa, tenho estudado a autoria como uma construção histórica que varia em diferentes contextos e épocas. O ponto que tenho me dedicado agora é a investigação de como se dá a relação entre a autoria e a autoridade. Partindo do conceito de função autor, proposto por Foucault, eu penso a autoria como aquilo que dá forma ao discurso, determina sua existência e circulação. E autoridade seria então aquilo que em diversos momentos históricos deu validou esse discurso.

Se desde a Modernidade, essa validação passa de forma hegemônica pela figura do autor, por seu talento ou especialidade, em outros períodos havia outras formas de chancela cultural, que de algum modo tinham um caráter mais coletivo.

Na Antiguidade, havia a figura das musas. A criação poética era mais fluida. Cada recitador, ou bardo, ao mesmo tempo em que declamava também criava, inserindo sempre algo de seu, que posteriormente poderia ser apropriado por outros, num processo aberto e contínuo. Sua performance era reconhecida por sua força expressiva, mas aquilo que somava à criação poética não era visto como fruto de sua individualidade.

Para além do poeta, havia a representação simbólica, à qual ele deveria se submeter, ou seguir, a fim de ter sua produção artística reconhecida como tal. E esta tradição cultural manifestava-se da figura mítica das musas, filhas de Zeus, que era responsável por dar consistência às criações, assegurando que a composição, mesmo que coletiva ou improvisada, era parte da cultura vigente.

Já na Idade Média havia a auctoritas que representava a mediação entre a fonte divina e o humano. Formada por clérigos, que se dedicavam ao estudo hermenêutico da Bíblia, era um coletivo hierarquizado responsável pelo estabelecimento de uma doutrina que determinava o valor da produção textual. Assim, a expressão individual estava sempre subordinada à avaliação deste cânone, reconhecido como o legítimo porta-voz do saber divino, para ser referendada e aceita como algo digno de atenção. A auctoritas era a própria representação da autoridade de Deus na terra, daí seu poder de validar ou vetar a produção discursiva. Vale lembrar que naquela época Deus era a fonte da inspiração suprema para todas as obras, o seu verdadeiro autor.

Um importante abalo na forma de produção e validação dos textos se dá com a chegada da Modernidade, quando surgem as condições culturais que tornam possível a consolidação da autoria como um processo centrado no indivíduo. É importante observar que a Modernidade foi também a era do projeto do sujeito autônomo. O conhecimento sofre deslocamento sob essa nova conjuntura, passando a orbitar em torno do sujeito. E também a era da ascensão da razão como parâmetro para o conhecimento. Neste contexto, a figura do autor como um indivíduo criador é fortalecida.

Com o Romantismo o entendimento da autoria como um atributo individual é ainda mais radicalizado. Nesse período, o autor deixa de ser visto como um artesão movido por uma inspiração transcendental para ganhar um outro patamar: o de gênio criador. Nessa época, mais do que em qualquer outra, foi afirmado o valor do talento individual como o fator determinante do processo criativo e também de sua validação.

Depois disso, ainda no século XIX, a concepção do autor individual e autônomo começa a ser deslocada sob o impacto de significativos abalos sofridos nos discursos do conhecimento moderno. Esse deslocamento atinge seu ápice com os pensadores do pós-estruturalismo, que irão inverter o entendimento do processo autoral, priorizando o discurso ou a linguagem em detrimento do sujeito, este último por si só, para eles, uma categoria já sob suspeição.

No entanto, mesmo com o questionamento da natureza subjetiva da autoria, a produção textual continuou baseada, de forma hegemônica, na criação individual e na análise do autor e sua obra, com ênfase ainda na assinatura do especialista ou do escritor como fatores de qualificação dos textos. Do ponto de vista da validação da obra, importava ainda saber quem escreveu e quais são suas credenciais, científicas ou artísticas, para chancelar determinada produção.

Eu aprofundei esta parte teórica da história das relações entre autoria e autoridade no artigo que vou apresentar esta semana no IV Simpósio da ABCiber.

Na atualidade, um importante deslocamento vem sendo observado nos processos autorais nos meios digitais, cada vez mais marcados por uma ação colaborativa entre múltiplos agentes criativos. O lugar anteriormente ocupado pelo especialista ou pelo gênio criador, cuja assinatura era já sinônimo de valor, é apropriado por uma multidão de atores sociais distribuídos em rede que criam coletivamente os mais diferentes tipos de publicações como jornais, blogs e enciclopédias.

Neste contexto novos sistemas de validação vem sendo criados, de forma a dar qualidade aos textos e separar a informação relevante do ruído. Já tivemos oportunidade de estudar o sistema de validação distribuída do website Slashdot , um dos pioneiros na implantação de modelos de qualificação de conteúdo baseados na avaliação do público leitor participante. Seu modelo serviu de inspiração para muitos outros projetos, como o americano Digg e o brasileiro Overmundo , ambos baseados em sistemas de pontuação que organizam e valorizam, de forma distribuída, as matérias publicadas.

E existe ainda o modelo de validação empregado pela Wikipédia, mais centralizado. Analisei alguns pontos neste post.

Daqui a alguns dias vou postar a análise sobre o modelo de validação do Overmundo, que passou por algumas mudanças desde a sua criação, e por isso mesmo é um caso bem interessante pra se pensar sobre os problemas da implantação de sistemas distribuídos de qualificação de conteúdo.

Deixe um comentário

Arquivado em Autoria Colaborativa, Sites colaborativos, Validação

Remix – do telejornal para o ITunes

Achei muito interessante este exemplo de remix: uma matéria jornalística que virou um vídeo de música, e explodiu nas redes com efeito viral. Tudo começou com uma entrevista que foi ao ar nos EUA, em 29 de julho deste ano, sobre uma invasão de domicílio e tentativa de estupro. Antoine Dodson, o herói da estória, que salvou sua irmã do marginal, virou o protagonista do vídeo que rendeu muitos dividendos. De acordo com matéria do Washington Post, a música “The Bed Intruder” vendeu milhares de cópias no ITunes e entrou na lista das 100 mais da Billboard. Antoine não se fez de rogado, criou ringtones e até uma linha de produtos, que inclui camisetas, imãs de geladeira e etc. Os 15 minutos de fama estão cada vez mais rápidos e lucrativos…

A matéria original

Um dos remixes no Youtube

Tudo bem, em tempos de rede, esta é uma notícia já ultrapassada, mais de dois meses, mas ainda vale o registro, eu acredito, muito por conta da originalidade transmidiática.

Deixe um comentário

Arquivado em Remix

A Wikipédia ainda pode ser chamada de enciclopédia livre?

Uma das principais questões relativas às publicações eletrônicas colaborativas diz respeito à forma pela qual seu conteúdo é avaliado, isto é, quais são os instrumentos empregados para destacar a qualidade no universo de contribuições recebidas. Enquanto Slashdot, Digg e Overmundo optam por sistemas de auto-valoração de seu conteúdo, a Wikipédia, um dos mais significativos projetos de autoria colaborativa da rede, se baseia em regras pré-estabelecidas e em sistemas fiscalizadores como forma de qualificar seus artigos.

Com o crescimento do projeto, esse modelo tem apresentado alguns problemas, o maior deles, uma grande tendência à centralização do processo editorial. A relação entre usuários e administradores na Wikipédia Lusófona confirma isso: atualmente são 35 administradores para 781.999 usuários registrados. O problema é reforçado pela relação tensa entre veteranos, em especial administradores, e usuários novatos, um dos principais conflitos observados na comunidade. Os que chegam muitas vezes são surpreendidos por reversões de suas contribuições e até punições, sem que entendam direito o que fizeram de errado. E os veteranos muitas vezes se ocupam muito mais em participar de discussões e disputas do que em produzir algo relevante para a publicação.

Todos podem editar a Wikipédia, a questão é conseguir fazer com que suas contribuições não sejam eliminadas. E esta habilidade parece estar relacionada ao status de cada editor na comunidade. De acordo com pesquisa coordenada por Edi H Chi, do grupo Augmented Social Cognition de Palo Alto Researcher Center, as chances de um editor de elite ter sua colaboração revertida são de 1%. Já para aqueles que fazem de uma a nove edições por mês este número sobe para 15%, e para os que fazem apenas uma edição no mês, o índice chega a 25%. Ou seja, um quarto das contribuições de editores eventuais é descartado. Pode-se argumentar que os mais antigos estão mais afinados com as normas da publicação e que os novatos ou colaboradores eventuais erram mais. Só uma pesquisa empírica poderá esclarecer até que ponto as reversões são justas, no entanto o conjunto das informações aponta mesmo para uma significativa centralização do processo editorial.

O que observamos é a emergência de uma elite editorial, não mais baseada nos requisitos da especialização ou do talento, mas formada a partir de critérios que levam em conta o tempo de dedicação ao projeto e a quantidade de contribuições oferecidas. Se por um lado o critério é justo, pois valoriza aquele que mais trabalhou pelo projeto, por outro lado apresenta certa fragilidade, pois dá margem disputas entre veteranos e novatos nas quais nem sempre há muita clareza sobre o mérito de quem vence – quando, por exemplo, as colaborações são revertidas sem maiores explicações – fazendo com que muitos desistam de participar da publicação.

Por último, vale a pena mencionar também a própria concepção de valor enciclopédico na qual se baseia o projeto. Entre as regras de edição da Wikipédia Lusófona há o conceito de notoriedade, como um dos critérios para a relevância de um verbete, que “é diferente do conceito de fama, importância ou popularidade, embora estes possam ter uma correlação positiva com a notoriedade”. Esses critérios são debatidos entre a comunidade até se chegar à definição de uma norma. No momento, os parâmetros para algumas áreas já estão definidos, enquanto outros ainda estão sendo discutidos. Já foi definido, por exemplo, que todas as novelas são notórias, mas apenas os filmes longa metragem que tenham enredo (?) e sejam citados em uma publicação fiável têm notoriedade. Em relação a obras artísticas em geral, valem as já consagradas ou largamente estudadas. As recentes devem ser consideradas não apenas em relação a sua publicação, mas também pela análise em publicações respeitadas, assim como por sua repercussão.

É certo que a enciclopédia pode estabelecer critérios a fim de definir uma linha editorial. O que se percebe é que da forma como estão definidos, esses critérios valorizam o que já está reconhecido socialmente, e fecham espaço para o novo que muitas vezes mereceria ser incluído por sua importância. Numa lógica oposta à horizontalidade da rede, observa-se por exemplo que os temas da cultura de massa, muitas vezes efêmeros, são plenamente contemplados e que, no entanto, as produções independentes tendem a ser rejeitadas. Como exemplo, citamos o caso dos artistas Edgar Franco e Fábio Oliveira Nunes, que tiveram verbetes sobre suas obras retirados da publicação, em 2007, com a justificativa de que não possuíam relevância. Indignados, eles então criaram o projeto Freakpedia, como a verdadeira enciclopédia livre, onde qualquer assunto pode virar verbete, em um protesto contra o que consideram uma “lógica excludente, maximizada pelo desconhecimento dos assuntos tratados”.

Analisamos aqui, de forma breve, alguns problemas do modelo de validação de conteúdo da Wikipédia. O que observamos é uma tendência à centralização nas decisões o que é oposto a sua proposta autoral, supostamente, aberta e distribuída. Esta contradição tem consequências para a proposta original do projeto, na medida em que muitas contribuições são revertidas, não chegando portanto a fazer parte da obra, a não ser por algumas horas. É compreensível que, com o grande crescimento do projeto, seu sistema de qualificação deveria ser aperfeiçoado a fim de combater o vandalismo e o spam. No entanto, nos parece que as medidas implementadas, representadas por novas normas e critérios e no aumento do poder dos administradores, acabaram ferindo o conceito maior que regia o projeto quando foi criado: o de ser a enciclopédia livre.

7 Comentários

Arquivado em Autoria Colaborativa, Validação, Wikipédia