Arquivo do mês: novembro 2010

Interfaces colaborativas – propostas, problemas, perspectivas

Na semana passada dei uma entrevista para o blog do Carlos Nepomuceno, jornalista e consultor para o mundo web. Entre outras coisas conversamos sobre interfaces colaborativas, especialmente sobre como ainda é difícil para os grandes jornais lidarem com as interações do público como algo que possa gerar valor. De um modo geral, os comentários são vistos como um mal necessário, algo que se aceita receber para se obter uma “cara” de jornalismo colaborativo, mas que de fato é encarado como um refugo, e não como conteúdo.

O tema veio à tona por conta de minha dissertação de mestrado, sobre o modelo de mediação auto-organizado do Slashdot. O site funciona como um fórum de discussão sobre notícias ligadas ao universo hacker – tecnologia, games, liberdade na rede, Open Source e Software Livre, etc. Cada um desses fóruns recebe centenas de comentários que são avaliados pela própria comunidade do site através de votação que resulta num ranking que vai de -1 até 5. Dessa forma, auto-organizada, as interações passam por um filtro que destaca o melhor das contribuições. Outro componente deste modelo de mediação colaborativo é o sistema chamado de karma, que pontua cada membro da comunidade de acordo com sua atuação, e oferece algumas vantagens para os mais bem pontuados.

O problema desse sistema, que eu analisei na minha pesquisa, é que os critérios para esta avaliação acabam sendo marcados por uma espécie de pensamento de grupo, isto é, tendem à homogeneidade. Em outras palavras, comentários discordantes do ideário hacker – por exemplo, um que defendia a superioridade do sistema operacional Windows em uma situação específica – são avaliados como negativos e tendem a perder visibilidade na interface. Se quiser conhecer o estudo de caso em mais detalhes, baixe aqui a dissertação.

A experiência do Slashdot serviu de inspiração para muitos outros projetos colaborativos, entre eles o brasileiro Overmundo. Como já analisei em outro post, depois de algum tempo foi preciso reformular o modelo porque o sistema de karma passou a gerar problemas de alta competição na comunidade e a fortalecer ainda mais as panelinhas existentes. Abandonou-se então essa pontuação dos participantes e optou-se por um sistema mais aberto onde todas as colaborações sejam publicadas nos espaços mais nobres do portal. Dessa forma, foi possível chegar mais perto do objetivo do projeto que é divulgar a diversidade da produção cultural brasileira.

Sistemas auto-organizados de valoração têm sido largamente usados nos mais variados projetos de sites, como o Mercado Livre, para avaliar a reputação dos vendedores; o Digg, para ranquear as notícias; e ainda nos comentários do Youtube, para destacar os mais interessantes.

Neste ponto, eu volto ao início: por que os jornais online não aproveitam melhor desses sistemas para dar relevância aos comentários? É certo que uma equipe de jornalistas teria muita dificuldade em acompanhar todos os centenas ou milhares de comentários diários em um site como o Globo Online. Mas, e se passasse esta tarefa para o público? Se os próprios participantes, que estão lendo ou fazendo comentários, votassem naqueles que na sua opinião fossem os mais importantes? O que aconteceria é que teríamos como resultado uma interface muito mais inteligente e interessante, que ofereceria, de forma emergente, um filtro para aquele universo inicialmente caótico de informações.

Esses comentários destacados não só facilitariam a leitura, a área de comentário se transformaria em um espaço mais nobre do que é hoje, mas também poderiam oferecer informações relevantes para os próprios jornalistas – novas pautas ou dados complementares às matérias. Alguns jornais online criaram projetos de participação do leitor com envio de matérias, fotos ou artigos, no estilo cidadão repórter. Mas para entrar de fato na linguagem digital podem ir mais além, aperfeiçoando suas interfaces a fim de torná-las mais dialógicas e inteligentes. Torço para que tenham essa ousadia!

Ouça: Entrevista ao Blog do Nepô, sobre a autoria em rede e as interfaces colaborativas

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Arquivado em Jornalismo online, Sites colaborativos, Tecnologias da Cooperação

A rede é livre fluxo

Desde sua origem, as redes de comunicação têm sido território de confronto entre as estratégias de controle e os fluxos de resistência pela prevalência da cooperação e da liberdade. Costumo dizer que a internet é uma trincheira onde se alinham, de um lado, os que defendem a livre circulação de dados, e de outro, os que querem controlá-la, seja por motivos financeiros ou políticos. No entanto, eu tenho a convicção de que não adianta tentar deter o fluxo de informação porque hoje ele faz parte do próprio cerne do modelo produtivo. Tentar pará-lo é como colocar a ponta do dedo num dique que está arrebentando…

A análise dos pesquisadores do capitalismo cognitivo, como Yann Molier-Boutang e Giuseppe Cocco, entre outros, mostra como na atualidade o modelo produtivo tomou a informação e o conhecimento como sua própria matéria prima. O problema, para aqueles que querem deter a circulação, é que este modelo impõe uma nova dinâmica, já que para produzir é preciso comunicar e trocar. O saber para se expandir precisa de mais saber, precisa ser socializado, fluir livremente, para que possa alimentar as redes de cooperação produtiva. E o segundo problema é exatamente este: este modelo produtivo é intrinsicamente coletivo, como rede e fluxo. Está baseado no compartilhamento.

Nós temos assistido a esse embate entre um modelo emergente baseado na cooperação social e no livre fluxo da informação e as antigas estruturas do capital corporativo que ainda resistem às mudanças. Nesse contexto, o segredo industrial e a propriedade intelectual são os representantes conceituais e jurídicos do que é posto em crise. O que leva a questão da autoria ao centro do palco das disputas sócio-econômicas na atualidade.

Vejamos alguns exemplos, já históricos, na área da comunicação.

O primeiro deles é o da criação do Independent Media Center por organizações alternativas de mídia e ativistas, durante a realização da reunião da Organização Mundial do Comércio, em Seattle, no ano de 1999, organizações. Inspirados no “copyleft” do software livre, eles resolveram criar um modelo similar para o jornalismo a fim de viabilizar a cobertura jornalística dos protestos contra o evento, que eram até então ignorados ou noticiados como meras arruaças pela mídia tradicional corporativa.

A novidade estava não só na possibilidade de divulgar notícias alternativas sobre os acontecimentos, mas no engajamento dessa nova mídia na luta que ali estava sendo travada. Com um corpo de repórteres profissionais e amadores (os próprios ativistas), o centro informou minuto a minuto o desenrolar dos conflitos através de matérias, fotos, áudios e vídeos, e recebeu mais de dois milhões de hits nesse período. Dessa forma, deu uma nova dimensão aos protestos, por um lado, tornando-os mais visíveis e reconhecidos pelo resto da sociedade, por outro lado, funcionou como um instrumento de comunicação e organização do próprio movimento, permitindo sua constante rearticulação frente à repressão policial .

Hoje existem cerca de 150 centros de mídia independente espalhados pelo mundo todo. No Brasil temos o Centro de Mídia Independente desde 2000, que atualmente tem 12 coletivos locais espalhados por diferentes pontos do País. Sem falar nas muitas outras iniciativas de open publishing, ou publicação aberta, um conceito que colocou em crise as práticas tradicionais de jornalismo, centralizadas numa equipe de edição.

Outro caso interessante de citar é o do Napster, que merece um post só para ele qualquer dia desses. Resumidamente, vale destacar que foi o primeiro programa para compartilhamento de música peer-to-peer que ganhou uma multidão de adeptos pelo mundo todo – chegou a ter no seu auge 30 milhões de pessoas conectadas simultaneamente. Mas três meses depois de seu lançamento foi processado pela Recording Industry Association of America – RIAA, representante da indústria fonográfica norte-americana, e acabou sendo retirado do ar.

E então, as pessoas deixaram de compartilhar músicas na internet? Não, apenas tiveram que trocar de software. Depois do Napster foram criados, entre outros, Audiogalax; Imesh; Morpheu; Gnutella; KaZaA; e atualmente existem os populares Emule e BitTorrent.

Outro caso emblemático foi o da quebra caso do padrão de criptografia AACS (Advanced Access Content System), usado para proteção anticópia de discos óticos de alta definição, como HD-DVD (High-Definition DVD) e BD (Blu-Ray). Alguns hackers, insatisfeitos com a restrição à sua liberdade de uso dos produtos, montaram um gerador de chaves, na verdade um código hexadecimal, para romper a proteção. A seqüência 09 F9 11 02 9D 74 E3 5B D8 41 56 C5 63 56 88 C0 rapidamente se espalhou por toda a rede, em blogs e websites. Imediatamente, as corporações responsáveis pela criação do AACS passaram a intimidar as empresas que produzem ou hospedam essas publicações eletrônicas, cobrando judicialmente a imediata censura à divulgação do código.

No entanto, a pressão, ou repressão, só fez com que os dados fluíssem ainda mais rápida e amplamente. A informação correu solta pelos blogs e redes sociais. Uma busca pelo código na ferramenta de busca Google na época do embate registrava mais de um milhão de ocorrências. As mais variadas formas de criatividade foram usadas para driblar as tentativas de proibição da divulgação. No Youtube, por exemplo, foi postado um vídeo no qual um homem canta a música “Oh Nine, Eff Nine”, uma reprodução da seqüência alfanumérica em ritmo de balada romântica . Mais uma vez, foi inútil tentar conter a circulação.

Será possível, como quer ainda parte significativa da indústria de bens culturais, coibir essa torrente pelo livre fluxo e compartilhamento da informação e do conhecimento pelas redes de comunicação? No meu entender, este é um movimento sem volta que faz parte de mudanças de fundo na sociedade contemporânea que dizem respeito, entre outras coisas, ao estatuto do conhecimento.

Na atualidade, o conhecimento se transformou no próprio motor do processo produtivo: o saber é a fonte para a produção de novos saberes. Para garantir o fluxo da criação de mais saberes, o conhecimento precisa ser compartilhado. Esta é a lógica que está por trás da transformação na distribuição dos bens imateriais na sociedade contemporânea, e como diz respeito à própria vitalidade do sistema produtivo, não há como freá-la. Haverá, certamente, a necessidade de se redefinir os parâmetros jurídicos para atender a essa nova configuração da produção cultural (vide a atual reforma da Lei de Direito Autoral no Brasil), mas estes certamente deverão partir do princípio de que o conhecimento é um bem comum a ser partilhado pelos cidadãos, sob a pena de não estar à altura do desafio que a nova dinâmica de circulação dos bens imateriais impõe, e, por isso, fracassar.

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A evolução do modelo editorial distribuído do Overmundo

Neste post vou analisar brevemente o modelo editorial distribuído do Overmundo, no qual o público participante, formado por cerca de 40 mil colaboradores inscritos, não apenas produz o conteúdo, mas também define os destaques na sua página principal, através de voto.

O Overmundo é um dos mais bem-sucedidos projetos colaborativos na internet brasileira. Atualmente, de acordo com dados da AdPlanner, ferramenta da Google de mensuração de tráfico na Internet, o site tem em média 700 mil visitantes únicos por mês. O interessante é observar como esse modelo evoluiu, com avanços e recuos, num processo construído através de sua adequação à atuação da comunidade.

No início, cada contribuição deveria passar obrigatoriamente por duas filas, permanecendo em cada uma delas por 48 horas: a fila de edição, onde poderia receber comentários, sugestões e críticas, a partir das quais poderia ser aperfeiçoada; e pela fila de votação, na qual seria submetida à avaliação, através de votos dos demais membros registrados da comunidade. Somente aqueles que recebessem mais de 20 votos seriam publicados na parte mais visitada do website (página principal e páginas das seções overblog, banco de cultura, guia e agenda). Os demais teriam sua colaboração publicada apenas na área do perfil de seu autor, portanto, com quase nenhuma visibilidade. Já os mais votados obtinham destaque na primeira página, com status de matérias principais.

Nesta primeira fase, a votação funcionava da seguinte maneira: cada participante, depois de entrar com sua senha no sistema, tinha o direito de votar uma vez em cada contribuição e seu voto equivalia a um overponto (nome dado à unidade de pontuação do website). A soma dessa pontuação é que definia a relevância ou não da contribuição, tanto para ser publicada como para ser destacada na página principal. Este destaque, por sua vez, era modulado por um algoritmo que combinava os votos recebidos com o tempo em que o texto estava publicado no site: quanto mais votos, mais destaque; quanto mais tempo, menos destaque. Esta foi a maneira encontrada para garantir, por um lado, o destaque das mais votadas, por outro, a renovação constante do conteúdo.

Pouco tempo depois veio a novidade: a implantação de um sistema de reputação chamado karma, que media o nível de participação de cada um de acordo com algumas variáveis: o número de vezes em que votava em colaborações de outros; os votos que recebia em suas próprias colaborações; os comentários que fazia a outras contribuições etc. Esse monitoramento era revertido em pontos e premiava os mais atuantes dando-lhes maior poder dentro da comunidade. A proposta era mesmo a de se criar uma hierarquia, destacando os mais comprometidos com o projeto, que pudesse garantir uma maior qualificação e representatividade do conteúdo publicado. Uma validação coletiva e distribuída, na qual a atuação de alguns, mais dedicados, teria mais peso do que a da maioria.

Segundo esse sistema, o karma de cada integrante da comunidade poderia variar de 1 a 10, número que correspondia ao peso de seu voto. Por exemplo, um colaborador muito atuante, que tivesse karma 10, somaria 10 overpontos a cada voto. Já o voto de alguém menos atuante, com karma 1, representaria apenas um overponto. Deste modo, criou-se uma elite entre os participantes, com maior poder, ou autoridade, para definir a relevância das colaborações. Não há dúvida de que o critério escolhido para dar maior peso à atuação de alguns, por seu comprometimento com o projeto, é em tese bastante justo. No entanto, esse sistema, com um modus operandi muito similar a um jogo, acabou gerando problemas na comunidade. Muitos encararam o processo como um jogo competitivo, atuando muito mais para somar pontos do que para contribuir com a qualidade do conteúdo. Além disso, acentuou ainda mais a ação de panelinhas, grupos fechados que chegavam a dominar o processo editorial, fazendo com que suas colaborações fossem sempre as mais votadas, em detrimento da proposta editorial de se abrir espaço para a divulgação da diversidade da cultura brasileira – o objetivo do projeto.

Depois de três anos de existência, em abril de 2009, decidiu-se fazer uma série de mudanças no modelo de publicação do projeto, em resposta às solicitações da comunidade e também às dificuldades encontradas para administrá-lo nos moldes anteriores. Somado aos problemas da competição pelo karma e das panelinhas, havia a reclamação dos participantes em relação à demora da publicação dos textos, que tinham que aguardar por 96 horas, nas filas de votação e edição, algumas vezes correndo o risco de perder sua atualidade. Paralelamente, o próprio sistema de votação, se por um lado contribuía para destacar o conteúdo mais relevante, por outro acabava por excluir boa parte das contribuições, que não alcançavam a pontuação mínima exigida, ao jogá-las para a publicação apenas no perfil, com visibilidade praticamente zero.

Assim, desde então, o modelo editorial foi bastante simplificado. Todas as colaborações passaram ser publicadas imediatamente nas respectivas áreas editoriais (overblog, banco de cultura, guia e agenda), ou, opcionalmente, podem ir para a fila de edição, onde permanecem por 48 horas para receberem sugestões e críticas. As contribuições continuam recebendo votos, mas agora só com objetivo de dar destaque na interface aos mais votados. O sistema de karma acabou e a pontuação voltou ao modelo inicial: o voto de todos os participantes passou a ter o mesmo peso, isto é, um. Segundo a equipe que administra o projeto, o objetivo das mudanças foi garantir, e privilegiar, a fruição das colaborações e a interação criativa em torno delas.

Este relato é interessante pois possibilita ver como se deu a dinâmica entre a proposta inicial de um projeto editorial colaborativo e distribuído e sua adequação à reação da comunidade. A atuação dos participantes foi indicando os melhores caminhos a seguir e, paralelamente, seus conflitos obrigaram a fazer ajustes para não se perder de vista o objetivo principal que, neste caso, é a divulgação da cultura brasileira. Sendo assim, optou-se por um filtro inicial muito mais frouxo: todas as colaborações são publicadas. No novo modelo, a qualificação do conteúdo, em tese, diminui, pois tudo se iguala na medida em que não há mais o corte de entrada. No entanto, ainda é possível dar relevância, separar o joio do trigo, oferecendo destaque na interface aos mais votados. Se o modelo do karma, apesar de bem intencionado, não apresentou os resultados esperados, seja por não garantir a qualidade do conteúdo, seja por gerar muitos conflitos na comunidade, a decisão de eliminá-lo parece ter sido acertada. E, por outro lado, se o objetivo maior do projeto é assegurar a ampla divulgação da produção cultural brasileira, o modelo atual, mais aberto, é também mais democrático, podendo atender melhor ao seu propósito.

É louvável ver a inteligência e flexibilidade da equipe por trás do projeto, que não se acomodou frente às dificuldade, ao contrário, foi operando mudanças buscando alcançar seu objetivo e, ao mesmo tempo, investindo na evolução de um modelo editorial realmente colaborativo.

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